CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O hábito de fazer oferendas e
petições junto aos túmulos dos mortos (e para os mortos) não tem origem cristã,
tampouco há registros apostólicos sustentando tal prática. Partiremos dessa
perspectiva, porém não nos deteremos em demonstrar a origem histórica não
cristã, e muito menos faremos uma análise teológica de textos bíblicos
utilizados pró e contra esse antigo costume.
O QUE DIZ A APOLOGIA CATÓLICA?
Segundo a apologia católica,
desde o século II existem registros de que os vivos se dirigem aos sepulcros
com a finalidade de render orações pelos mortos. Personagens como Tertuliano e
Cipriano (no século III), Cirilo de Jerusalém (no século IV) e Crisóstomo (no
século V) são citados como defensores desse costume, que é apontado como sendo
de tradição apostólica.
BISPO CATÓLICO SE POSICIONA CONTRÁRIO À OFERENDA AOS MORTOS
De acordo com Agostinho
(354-430), o Bispo Ambrósio (um dos principais doutores da igreja dos primeiros
séculos) proibiu o costume de se fazer oferenda aos mortos por duas razões
principais: uma, porque os fiéis tinham o hábito da embriaguez durante os atos
litúrgicos; a segunda, porque tal costume se assemelhava a uma festa pagã,
chamada de parentales (ou parentais). Vejamos as palavras de Agostinho, em Confissões, em cuja oportunidade ele falava de Mônica, sua mãe:
“Assim, um dia, como costumava na
África, levou papas, pão e vinho puro à sepultura dos mártires, mas o porteiro
não quis permitir suas ofertas. Quando soube que essa proibição vinha do bispo,
resignou-se tão piedosa e obedientemente, que eu mesmo me admirei de quão
facilmente passasse a condenar o hábito, e não a criticar a proibição de
Ambrósio”.
Um pouco adiante, Agostinho prossegue:
“Tão logo, porém, soube que o
ilustre pregador e mestre da verdade [Ambrósio] proibira tal costume – mesmo
para os que o praticavam sobriamente [ou seja, sem se embriagarem], para não
dar aos ébrios azo de se embriagarem, e porque essa espécie de parentales era muito semelhante à
superstição dos pagãos – ela se absteve de muito boa vontade”.
Notamos, facilmente, que a mãe de
Agostinho (canonizada como Santa Mônica) se absteve de praticar oferendas aos
mortos depois de ser advertida pelo bispo católico acerca da semelhança que
havia entre essa tradição e o costume pagão.
No entanto, segundo o próprio Agostinho, sua mãe não deixou de fazer
visitas aos túmulos dos mártires, mesmo após os conselhos do bispo católico.
Assim prossegue o autor de Confissões:
“No lugar da cesta cheia de
frutos da terra, ela aprendeu a levar ao túmulo dos mártires um coração cheio
de puros desejos, dando o que podia aos pobres. Celebrava assim a comunhão com
o corpo do Senhor, cuja paixão serviu de modelo aos mártires em seu sacrifício
e coroação”.
Conforme se vê, Mônica não deixou
de visitar os túmulos dos mártires, mas apenas deixou de lhes fazer oferendas.
Nota-se, mais ainda, que aparentemente ela não tinha o hábito de peticionar
junto ao sepulcro, mas apenas o de fazer oferendas, cuja prática foi
substituída pelas orações depois da advertência do bispo, que, segundo se sabe
de sua biografia, não rompeu com a tradição de render orações pelos mortos.
A MEMÓRIA DOS MÁRTIRES PASSOU A SER VISTA COMO ESTÍMULO À PERSISTÊNCIA NA FÉ
Provavelmente na transição do primeiro
para o segundo século, quando a igreja já havia experimentado duras
perseguições, os cristãos que, naquela ocasião, mantinham firme o pensamento
apostólico, passaram a dar maior significância à memória de cristãos cuja vida
piedosa servia de exemplo a ser seguido, especialmente pelo fato deles não
negarem a fé diante da espada romana. Os mártires cristãos eram vistos como
modelos a serem seguidos.
Veja-se, por exemplo, o próprio
Justino Mártir (100-165), que se converteu ao cristianismo depois que tomou
conhecimento de como os mártires cristãos não abdicavam de sua fé, ainda que
pagassem com a própria vida pelo fato de permanecerem crentes em Jesus Cristo.
Ou seja, ser assassinado pela simples razão de não negar essa crença era visto
como um ato encorajador, nascendo daí o costume de perpetuar a memória desses
mártires, inclusive com visitas aos túmulos, como foi o caso de Mônica.
A MEMÓRIA DOS MÁRTIRES E A PERMISSÃO PARA A LEITURA DOS LIVROS
APÓCRIFOS DURANTE OS CULTOS
Não entraremos no mérito sobre os motivos pelos quais são rejeitados os livros apócrifos, mas pontuar que, embora alguns dos pais da igreja tivessem
objeções em relação à canonização de alguns desses livros, por sua vez
assentiam que alguns deles poderiam ser lidos na igreja, “para edificação”
(veja-se a posição de Jerônimo a esse respeito), como foi o caso da carta de I
Clemente e de uma carta enviada pelo bispo de Roma ao bispo de Corinto, por
volta do ano 170 d.C., cujas obras eram constantemente lidas, para edificação,
na igreja da referida cidade grega.
No Cânon 47 do terceiro Concílio
de Cartago, em 397 d.C., chegou-se ao consenso de “... que seja, contudo,
permitido que as paixões dos mártires sejam lidas na celebração das datas dos
mártires”, demonstrando um prenúncio para a oficialização das datas
comemorativas dos então futuros santos católicos, todos considerados mártires
para a referida denominação eclesiástica.
O que se quer dizer, portanto, é
que, no século IV (o mesmo em que viveram Agostinho, Mônica e o bispo
Ambrósio), a igreja concebia uma significativa importância à memória daqueles
que haviam morrido em nome da fé cristã.
MÔNICA VISITA OS TÚMULOS DOS MÁRTIRES E NÃO DOS MORTOS “COMUNS”
Cabe inicialmente esclarecer a
diferença entre um mártir e um não mártir. O primeiro é uma pessoa que sofreu
duras perseguições por causa da fé que professa. Não se trata, aqui, de uma
pessoa que opera milagres depois da morte. O não mártir é aquele que não sofreu
duras perseguições pela fé que abraçou.
De posse desse ligeiro
esclarecimento, voltemos agora para o caso de Mônica. Note-se que, em todo o
momento, Agostinho não faz alusão aos túmulos dos parentes, mas apenas aos
túmulos dos mártires, ou seja, de cristãos que, em vida, eram considerados
exemplos a serem seguidos. Na verdade, Agostinho não sinalizava de forma
positiva no que concerne à prática de orar pelos mártires ou pelos mortos “comuns”
(para saírem do purgatório), mas para fazer súplicas aos mártires – uma demonstração
de que naquele século já estava bastante solidificada a crença de que os “santos”
operavam milagres.
QUANDO E COMO SURGIU A CRENÇA DE QUE OS MÁRTIRES PODEM OUVIR AS ORAÇÕES
DOS VIVOS?
Antes de entrarmos no mérito da
pergunta, convém esclarecer que o fato dos cristãos que viveram nos primeiros
séculos seguintes à morte dos apóstolos terem adotado o hábito de fazer visitas
aos túmulos com a intenção de render súplicas aos mártires não é prova cabal
que autoriza essa crença, a saber, a de que os mortos ouvem a oração dos vivos
(e aqui fazemos um juízo de valor frente às Escrituras).
O que aconteceu é bem simples de explicar: com a difusão de
doutrinas ditas apócrifas (gnósticas, pagãs, etc.), a igreja foi perdendo
gradativamente a identidade original, notadamente quando pensamentos e práticas
pagãs passaram a se confundir com pensamentos e práticas cristãs. A própria
conversão de Constantino e os efeitos dessa conversão contribuíram maciçamente para
essa mistura de doutrinas e de atos litúrgicos, embora no primeiro século já havia falsos mestres entre os cristãos. Nascem e
difundem daí as crenças e as práticas de oferendas e intercessões pelos mortos,
bem como a de que eles podem ouvir as súplicas dos vivos.
CONCLUSÃO
Não está claro, do ponto de vista
documental, que, no primeiro século, os primeiros cristãos tivessem o hábito de
se dirigirem aos túmulos com a missão de fazer oferendas ou de renderem
súplicas aos mártires, ou ainda de orarem pelos mortos. Pelo menos é certo que
em suas epístolas, os escritores neotestamentários não se reportaram, tampouco abonaram
essa prática. Tal costume nasceu, indubitavelmente, da perda da identidade
original dos cristãos, cujo marco cronológico se deu muito provavelmente a
partir do último meado do segundo século ou mesmo do início do terceiro século.
Uma coisa é perpetuar a memória dos parentes mortos - inclusive dos mártires. Outra coisa é valer-se dessa tradição milenar como um imperativo dogmático, capaz de romper com o ensinamento apostólico. Ou seja, a igreja apóstata não somente recepcionou como também difundiu a ideia de que os mártires podem ouvir e atender às súplicas dos vivos, contrariando a Bíblia sagrada.
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