quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A MEMÓRIA DOS MÁRTIRES E AS VISITAS AOS TÚMULOS NOS PRIMEIROS SÉCULOS DO CRISTIANISMO

 
 
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O hábito de fazer oferendas e petições junto aos túmulos dos mortos (e para os mortos) não tem origem cristã, tampouco há registros apostólicos sustentando tal prática. Partiremos dessa perspectiva, porém não nos deteremos em demonstrar a origem histórica não cristã, e muito menos faremos uma análise teológica de textos bíblicos utilizados pró e contra esse antigo costume.
O QUE DIZ A APOLOGIA CATÓLICA?
Segundo a apologia católica, desde o século II existem registros de que os vivos se dirigem aos sepulcros com a finalidade de render orações pelos mortos. Personagens como Tertuliano e Cipriano (no século III), Cirilo de Jerusalém (no século IV) e Crisóstomo (no século V) são citados como defensores desse costume, que é apontado como sendo de tradição apostólica.
BISPO CATÓLICO SE POSICIONA CONTRÁRIO À OFERENDA AOS MORTOS
De acordo com Agostinho (354-430), o Bispo Ambrósio (um dos principais doutores da igreja dos primeiros séculos) proibiu o costume de se fazer oferenda aos mortos por duas razões principais: uma, porque os fiéis tinham o hábito da embriaguez durante os atos litúrgicos; a segunda, porque tal costume se assemelhava a uma festa pagã, chamada de parentales (ou parentais). Vejamos as palavras de Agostinho, em Confissões, em cuja oportunidade ele falava de Mônica, sua mãe:
“Assim, um dia, como costumava na África, levou papas, pão e vinho puro à sepultura dos mártires, mas o porteiro não quis permitir suas ofertas. Quando soube que essa proibição vinha do bispo, resignou-se tão piedosa e obedientemente, que eu mesmo me admirei de quão facilmente passasse a condenar o hábito, e não a criticar a proibição de Ambrósio”.
Um pouco adiante, Agostinho prossegue:
“Tão logo, porém, soube que o ilustre pregador e mestre da verdade [Ambrósio] proibira tal costume – mesmo para os que o praticavam sobriamente [ou seja, sem se embriagarem], para não dar aos ébrios azo de se embriagarem, e porque essa espécie de parentales era muito semelhante à superstição dos pagãos – ela se absteve de muito boa vontade”.
Notamos, facilmente, que a mãe de Agostinho (canonizada como Santa Mônica) se absteve de praticar oferendas aos mortos depois de ser advertida pelo bispo católico acerca da semelhança que havia entre essa tradição e o costume pagão.
No entanto, segundo o próprio Agostinho, sua mãe não deixou de fazer visitas aos túmulos dos mártires, mesmo após os conselhos do bispo católico. Assim prossegue o autor de Confissões:
“No lugar da cesta cheia de frutos da terra, ela aprendeu a levar ao túmulo dos mártires um coração cheio de puros desejos, dando o que podia aos pobres. Celebrava assim a comunhão com o corpo do Senhor, cuja paixão serviu de modelo aos mártires em seu sacrifício e coroação”.
Conforme se vê, Mônica não deixou de visitar os túmulos dos mártires, mas apenas deixou de lhes fazer oferendas. Nota-se, mais ainda, que aparentemente ela não tinha o hábito de peticionar junto ao sepulcro, mas apenas o de fazer oferendas, cuja prática foi substituída pelas orações depois da advertência do bispo, que, segundo se sabe de sua biografia, não rompeu com a tradição de render orações pelos mortos.
A MEMÓRIA DOS MÁRTIRES PASSOU A SER VISTA COMO ESTÍMULO À PERSISTÊNCIA NA FÉ
Provavelmente na transição do primeiro para o segundo século, quando a igreja já havia experimentado duras perseguições, os cristãos que, naquela ocasião, mantinham firme o pensamento apostólico, passaram a dar maior significância à memória de cristãos cuja vida piedosa servia de exemplo a ser seguido, especialmente pelo fato deles não negarem a fé diante da espada romana. Os mártires cristãos eram vistos como modelos a serem seguidos.
Veja-se, por exemplo, o próprio Justino Mártir (100-165), que se converteu ao cristianismo depois que tomou conhecimento de como os mártires cristãos não abdicavam de sua fé, ainda que pagassem com a própria vida pelo fato de permanecerem crentes em Jesus Cristo. Ou seja, ser assassinado pela simples razão de não negar essa crença era visto como um ato encorajador, nascendo daí o costume de perpetuar a memória desses mártires, inclusive com visitas aos túmulos, como foi o caso de Mônica.
A MEMÓRIA DOS MÁRTIRES E A PERMISSÃO PARA A LEITURA DOS LIVROS APÓCRIFOS DURANTE OS CULTOS
Não entraremos no mérito sobre os motivos pelos quais são rejeitados os livros apócrifos, mas pontuar que, embora alguns dos pais da igreja tivessem objeções em relação à canonização de alguns desses livros, por sua vez assentiam que alguns deles poderiam ser lidos na igreja, “para edificação” (veja-se a posição de Jerônimo a esse respeito), como foi o caso da carta de I Clemente e de uma carta enviada pelo bispo de Roma ao bispo de Corinto, por volta do ano 170 d.C., cujas obras eram constantemente lidas, para edificação, na igreja da referida cidade grega.
No Cânon 47 do terceiro Concílio de Cartago, em 397 d.C., chegou-se ao consenso de “... que seja, contudo, permitido que as paixões dos mártires sejam lidas na celebração das datas dos mártires”, demonstrando um prenúncio para a oficialização das datas comemorativas dos então futuros santos católicos, todos considerados mártires para a referida denominação eclesiástica.
O que se quer dizer, portanto, é que, no século IV (o mesmo em que viveram Agostinho, Mônica e o bispo Ambrósio), a igreja concebia uma significativa importância à memória daqueles que haviam morrido em nome da fé cristã.
MÔNICA VISITA OS TÚMULOS DOS MÁRTIRES E NÃO DOS MORTOS “COMUNS”
Cabe inicialmente esclarecer a diferença entre um mártir e um não mártir. O primeiro é uma pessoa que sofreu duras perseguições por causa da fé que professa. Não se trata, aqui, de uma pessoa que opera milagres depois da morte. O não mártir é aquele que não sofreu duras perseguições pela fé que abraçou.
De posse desse ligeiro esclarecimento, voltemos agora para o caso de Mônica. Note-se que, em todo o momento, Agostinho não faz alusão aos túmulos dos parentes, mas apenas aos túmulos dos mártires, ou seja, de cristãos que, em vida, eram considerados exemplos a serem seguidos. Na verdade, Agostinho não sinalizava de forma positiva no que concerne à prática de orar pelos mártires ou pelos mortos “comuns” (para saírem do purgatório), mas para fazer súplicas aos mártires – uma demonstração de que naquele século já estava bastante solidificada a crença de que os “santos” operavam milagres.
QUANDO E COMO SURGIU A CRENÇA DE QUE OS MÁRTIRES PODEM OUVIR AS ORAÇÕES DOS VIVOS?
Antes de entrarmos no mérito da pergunta, convém esclarecer que o fato dos cristãos que viveram nos primeiros séculos seguintes à morte dos apóstolos terem adotado o hábito de fazer visitas aos túmulos com a intenção de render súplicas aos mártires não é prova cabal que autoriza essa crença, a saber, a de que os mortos ouvem a oração dos vivos (e aqui fazemos um juízo de valor frente às Escrituras).
O que aconteceu é bem simples de explicar: com a difusão de doutrinas ditas apócrifas (gnósticas, pagãs, etc.), a igreja foi perdendo gradativamente a identidade original, notadamente quando pensamentos e práticas pagãs passaram a se confundir com pensamentos e práticas cristãs. A própria conversão de Constantino e os efeitos dessa conversão contribuíram maciçamente para essa mistura de doutrinas e de atos litúrgicos, embora no primeiro século já havia falsos mestres entre os cristãos. Nascem e difundem daí as crenças e as práticas de oferendas e intercessões pelos mortos, bem como a de que eles podem ouvir as súplicas dos vivos.
CONCLUSÃO
Não está claro, do ponto de vista documental, que, no primeiro século, os primeiros cristãos tivessem o hábito de se dirigirem aos túmulos com a missão de fazer oferendas ou de renderem súplicas aos mártires, ou ainda de orarem pelos mortos. Pelo menos é certo que em suas epístolas, os escritores neotestamentários não se reportaram, tampouco abonaram essa prática. Tal costume nasceu, indubitavelmente, da perda da identidade original dos cristãos, cujo marco cronológico se deu muito provavelmente a partir do último meado do segundo século ou mesmo do início do terceiro século.
Uma coisa é perpetuar a memória dos parentes mortos - inclusive dos mártires. Outra coisa é valer-se dessa tradição milenar como um imperativo dogmático, capaz de romper com o ensinamento apostólico. Ou seja, a igreja apóstata não somente recepcionou como também difundiu a ideia de que os mártires podem ouvir e atender às súplicas dos vivos, contrariando a Bíblia sagrada.
.